segunda-feira, setembro 01, 2025

Qual "Cultura" Incentivamos?


Quando pensamos em cultura na atualidade, o que logo vem à tona são as leis de incentivo à moda brasileira, especialmente a Lei Rouanet. De um lado, críticos denunciam que ela não fomenta de verdade a expansão e a diversidade da arte; de outro, defensores insistem em sua relevância.

Sejam os críticos por um lado, ou os intréptos defensores por outro, há um consenso: não incentivam e tão pouco fomentam de verdade a espansão e multiplicidade plural da arte no país.

Podemos mirar no pasto dos vizinhos, a nossa margem ou a outra orelha oceânica para tentar imaginar possíveis alternativas. Assim saímos da seara simplesmente retórica e podemos nos debruçar um pouco sobre o quê e como em outros lugares do universo se praticam as políticas públicas para a diversificação e disponibilização de recursos para a cultura.

Atualmente na Argentina, apesar de se ter um governo de retórica agressiva contra o pensamento livre e primordialmente radical em contra da arte e a cultura, através da luta da classe artística um modelo de fomento bastante diferente ao brasileiro segue em vigência. Existe uma espécie de equilíbrio de instrumentos, estes que podemos vislumbrar com um mescla do sistema "europeu” — que busca reforçar fundos orçamentários (FNC e congéneres estaduais/municipais), mantendo o mecenato como complemento, não como pilar. Segundo a European Commission o uso de metas e avaliação públicas: ligam financiamento a objetivos verificáveis (acesso, diversidade territorial, inovação, públicos jovens), com júris independentes e relatórios de resultados. O objetivo é a desconcentração territorial: linhas dedicadas para regiões e linguagens sub-atendidas, inspiradas em práticas da Creative Europe e outras fundações públicas europeias. 

A França por exemplo pratica de um sistema de transparência do mecenato: adota a régua francesa (limites proporcionais ao volume de negócios, reporte público, plafonds) para reduzir assimetria e marketing-driven funding.

Um sentido similar de estabilidade jurídica é praxe na experiência argentina de afetação específica (2022), que mostra uma via para blindar receitas de políticas culturais estratégicas ao longo de ciclos políticos, algo que no Brasil é pendular e metamórfico a cada mudança de governo. Seja com alteração do sistema de acesso, editais e modificações nas leis, e nem se falar dos critérios abstratos de seleção e múltiplas variações conforme sejam o âmbito dos mesmos: municipal, estadual, e/ou federal.

Até 2023, a Argentina assemelha-se mais a um modelo de fundos públicos setoriais com receitas próprias (estilo europeu), enquanto o Brasil permaneceu mecenato-cêntrico a nível federal. O mecenazgo portenho aproxima-se da Rouanet em algumas questões, no plano municipal.

Para um efeito de comparação tanto orçamentário como sócio-cultural, nos debrucemos um pouco no país vizinho. A Argentina tem forte fomento direto por fundos específicos:

INCAA (cinema), INT (teatro), INAMU (música), CONABIP (bibliotecas), Fondo Nacional de las Artes; historicamente financiados por impostos e taxas com afetação específica (“asignaciones específicas”). Em outubro de 2022, o Congresso prorrogou por 50 anos essas afetações, garantindo receita aos organismos culturais até 2072. 

Paralelamente a robusta política de âmbito nacional existem políticas paralelas, não complementares como o Mecenazgo argentino: sobretudo no âmbito local; destaque para a Cidade de Buenos Aires (programa “Mecenazgo/Participación Cultural”), que permite que contribuintes financiem projetos com benefícios fiscais municipais. 

Quem decide as prioridades?

Na Argentina até 2023 os fundos setoriais tomam decisões por editais e júris, alinhando-se mais ao padrão europeu de fomento direto do que ao peso brasileiro da renúncia fiscal federal. Enquanto no Brasil: a decisão final de patrocínio desloca-se para o setor privado; o FNC existe mas, como realça o artigo, ficou historicamente subdimensionado face ao mecenato. Aqui no Brasil: a previsibilidade depende do apetite de patrocinadores e da capacidade de captação (mais forte em grandes centros/entidades), o que alimenta a crítica de concentração do artigo.

Distribuição, Concentração, Finalidade Pública e Contrapartidas

O Brasil: com um desenho de mecenato favorece a concentração geográfica e setorial (captação maior onde há empresas e marketing cultural fortes). A base legal e a lógica do mecanismo diferentemente ao que ocorre na União Europeia: os programas estabelecem quotas/linhas e critérios de equilíbrio. (ex.: países de menor capacidade recebem atenção específica no Creative Europe; júris internacionais mitigam concentração por notoriedade). 

No Brasil, o sistema de mecenato com contrapartidas sociais existem, mas a responsividade a objetivos estratégicos nacionais pode diluir-se quando a seleção final depende do interesse das empresas privadas. Já na UE: editais definem prioridades públicas explícitas (circulação transnacional, transição digital/verde, diversidade, públicos jovens), avaliadas por peritos e não por sponsors. 

Para não entrar em uma diversidade multipolar da Europa, voltemos ao caso específico da França: aonde o mecenato é complementar aos grandes fundos setoriais públicos; a dedução fiscal convive com forte planejamento cultural de Estado. mesmo onde há mecenato fiscal (França, Itália, etc.), o centro de gravidade permanece nos fundos públicos concursáveis, com metas programáticas (diversidade, coesão, internacionalização). No Brasil, o peso do incentivo fiscal tende a deslocar a decisão para o patrocinador privado, o que se aproxima de uma não política pública de incentivo a cultura.

Comparativo de orçamentos e verbas

Brasil (Rouanet): a seleção técnico-cultural é pública, mas a decisão final de patrocinar depende do mercado privado (empresas escolhem projetos dentro do limite fiscal). O Estado abre mão de receita para viabilizar projetos. 

Lá na União Europeia: há uma forte prevalência de financiamento direto por concurso público (grants). O programa Creative Europe 2021-2027 (≈ €2,44–2,53 mil milhões) financia setores cultural/audiovisual via chamadas europeias; a decisão é pública(arm’s-length). A França combina o grants e mecenato fiscal regulado pela Loi Aillagon em que empresas têm redução de imposto de 60% sobre donativos até 0,5% do volume de negócios (ou €20.000, o que for maior), com regras e relatórios; coexistentes a grandes fundos públicos setoriais (ex.: CNC no cinema).

Infelizmente os sucessivos governos de vários espectros neoliberais com distintos perfumes e/ou retórica mantiveram a primazia do mecenato em detrimento a um possível Fundo Nacional de Cultura (FNC) e de políticas de universalização do acesso; essa estrutura produziu uma cultura “esterilizada”, pouco emancipatória, e replicada em estados e municípios; contrapõe-se no mundo a este modelo os europeus w o caso cubano (planeamento estatal directo) para defender que o Estado deveria definir prioridades e dotar fundos de forma centralizada.

Em suma, a dependência excessiva de incentivos fiscais, concentração são como resultante o afastamento de objetivos de uma possível democratização cultural. As críticas constantes de que o Brasil vive uma “não política pública de incentivo à cultura” faz sentido quando contrastada com as experiências europeias e argentinas. O desafio brasileiro é recompor o equilíbrio entre incentivo fiscal e fomento direto, garantindo planejamento e metas públicas claras.


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