Quando a dita esquerda passou a incorporar a agenda LGBT? Uma espécie de mutatis mutandis do que fora há um século o início do fascismo é o que se apercebe no cotiano do ocidente na atualidade e taxada como de ultra-direita. Não façamos comparações com o oriente, tão complexo e heterogéneo, para não incorrer no erro de ramificar demais esse artigo e dissipar o foco. Este que por si só é multifocal por ende. Mas a pergunta que não quer calar é: Quando o socialismo deixou de ser homofóbico? Ainda hoje na Rússia é difícil e perigoso organizar uma simples Parada Gay ou uma manifestação pelos direitos dos homossexuais, similaridade recorrente em grande parte dos países pós-soviéticos.
A resposta a provocação talvez não seja apenas uma. Em um mundo aonde ondas conservadoras se alastram podemos hoje surtar e simplesmente não recordar que bandeiras empunhadas hoje por reacionários. Sim sabemos que o Brasil tem uma bancada evangélica e homófoba, ruralista arcaica, neonazista e fervorosa; e que juntas a falta de educação do povo são uma bomba contra minorias. Mas a história política mundial sempre foi pendular, e assim segue. Quem pensaria que na terra da Revolução à Francesa surgiria o monstro Marine Le Pen? Que no bastião da democracia remanesceria ao poder um Trump? Que na democrática, pós-nazista, Alemanha uma AfD com discurso fascista ultrapassaria os 10%?
Não obstante a algumas décadas poloneses, checos, húngaros e búlgaros após pertenceram aos russos em sua gigantesca maquina outrora chamada União Soviética, eliminaram o artigo que criminalizava relações entre pessoas do mesmo sexo em 1968. Até Boris Yeltsin removeu o artigo russo sobre isso em 1992, após a perestroica e outras "aberturas" na nova Rússia. A Romênia, por outro lado, aumentou a pena para algo entre dois e sete anos em 1997 e criminalizou a "propaganda" gay, mas logo anos depois passou a descriminalizar atos homossexuais para integrar a União Europeia. Algo que na atual Russia parece ser impossível lei com a ascensão do reacionário, Vladmir Putin, que em seu governo tem reconhecimento mundial de atos contra as liberdades individuais, a oposição e a comunidade LGBT.
É tão complexa a cronologia da legalidade LGBT no mundo que necessitaríamos meses e meses a detalhar como cada país e seus regimes foram avançando e retrocedendo e novamente avançando e retrocedendo quanto ao tema. Mas algo que podemos realmente perceber é que tanto nos países liberais de hoje e ontem, quanto nos socialistas a questão das liberdades individuais e sexuais são moeda de troca e fator de uso político. Hoje em Cuba mesmo ainda sendo um país auto-proclamado socialista e considerado fechado se pode ver autorizadas operações de mudança de sexo no seu sistema gratuito e universal de saúde, embora em países democráticos e neoliberais sejam moeda de troca em votações no congresso e bandeiras de campanha tanto pró com em contra.
Mas o hoje não apaga o passado. Em entrevista ao site Opera Mundi, Mariela Castro, filha Raúl e sobrinha do ex-comandante Fidel, declarou que: "A homofobia institucionalizada dos primeiros anos da Revolução refletia uma realidade e estava em consonância com a cultura da época. Zombar dos homossexuais era algo normal, assim como depreciá-los ou denegri-los. Era normal discriminá-los no mercado de trabalho, em sua vida profissional, e esse era o aspecto mais grave." e ainda lembra um dos períodos mais duros para os homoafetivos quando "No Congresso Nacional de “Educação e Cultura”, em 1971, foram estabelecidos parâmetros exclusivos contra pessoas com orientação sexual distinta do que se considerava a regra. Até 1976, data em que foi criado o Ministério da Cultura. Com a adoção da nova Constituição naquele ano, essa resolução que separava homossexuais dos mundos da educação e da cultura foi declarada inconstitucional e eliminada. Foi então adotada outra política em nível educacional e cultural."
Nos híbridos anos 70 as transmutações no pensamento quanto a homossexualidade só são contadas do lado de cá do Muro de Berlim. Mas um dentre poucos que adentraram ao mundo pós-marxista, sem negá-lo fora o prestigiado O homem e a mulher na intimidade[Lisboa: Editorial Caminho, 1983], de Sigfred Schnabel, publicado originalmente em 1979 na Alemanha Oriental, que foi um best seller em vários países de doutrina socialista, afirmava que a homossexualidade não era uma doença. Sendo um dos primeiros autores científicos a demonstrar isso com repercussão em Cuba e países alinhados a União Soviética.
O homossexualismo(termo usado à época e já em desuso) era visto, como um crime e um ato contra-revolucionário, ou mesmo uma patologia psiquiátrica nas repúblicas socialistas baixo o comando de Moscou. O indivíduo era visto como sujeito de uma verdadeira perversão, com infantilismo psíquico, defeito orgânico e distúrbio hormonal. No art. 121 do código penal soviético se previa, de fato, a reclusão de até cinco anos, com a possibilidade de agravante de até oito anos em casos de prática mediante coação, de relações com menores de idade, e mediante violência. Muitas vezes o aprisionamento era convertido em trabalhos forçados em um dos muitos gulag, onde os homossexuais sofriam humilhações e "pestaggi", mesmo por parte de outros condenados.
Nos gulag acabavam milhões de pessoas pelos mais variados motivos, empregados muitas vezes em obras faraônicas, como o Canal do Mar Báltico. Os internados morriam de cansaço, de frio, de doenças, de espancamento e de fome, escavando nas minas ou desmatando as zonas perdidas da Sibéria. Se denominavam gulag o sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos, presos políticos e qualquer cidadão em geral que se opusesse ao regime na União Soviética (todavia, a grande maioria era de presos políticos; no campo Gulag de Kengir, em junho de 1954, existiam 650 presos comuns e 5200 presos políticos).
Sempre devemos relativizar ou situar o contexto histórico, mas sem ser piegas. O escritor francês André Gide realizou uma viagem a União Soviética em 1936, com um companheiro e voltou profundamente abalado e escreveu dois livros sobre sua experiência. O primeiro em tons mais sutis e o segundo mais objetivo sobre a miséria social e ausência de liberdade de expressão na URSS. Os comunistas e seus aliados voltaram-se violentamente contra ele, atribuindo insinuações e falando de seus problemas com a "moral" e sua devoção a homens mais jovens.
Mas podemos revolcar o início da União Soviética, quando em 1918, após o triunfo da Revolução Bolchevique, a homossexualidade foi descriminalizado em todo o território da União Soviética. Desse modo, a URSS se tornou, por quase uma década, o primeiro país a "aprovar" práticas não heterossexuais. Embora em boa parte do mundo a prática fora condenada. Com a chegada de Stalin ao poder intensificou-se e perseguição aos gays a partir de 1934 passou a ocorrer fortemente até os primeiros anos da década de 1980. Calcula-se que aproximadamente 50 mil homossexuais tenham sido condenados sumariamente, e muitos deles morreram em campos de concentração.
Até à época de Pedro, o Grande, a homossexualidade, na Rússia, era tolerado mesmo se sancionada pela Igreja Ortodoxa com penitências. Apenas em 1706 foi instituída a fogueira para qualquer um que fosse descoberto em uma relação homossexual, e no ano de 1917 aconteceu a Revolução de Outubro e, graças à intervenção dos cadetes (KD, Partido dos constitucionalistas democráticos), a homossexualidade foi finalmente descriminalizada. Os Bolchevique se demonstraram contrários a esta nova forma de liberdade, por sua postura postura sexófoba.
No "Congresso Mundial da Liga pelas Reformas Sexuais", em Copenhague em 1928 se discutira abertamente o tema da homossexualidade, e seguindo esta linha ainda em 1930 Mark Serejskij, perito médico, descreveu na Grande Enciclopédia Soviética que "a legislação soviética não reconhece crimes ditos contra a moral. As nossas leis partem do princípio da defesa da sociedade, e portanto preveem uma punição somente naqueles casos nos quais o objeto de interesse homossexual seja uma criança ou um menor de idade."
E se podemos trazer uma dialética materialista a ainda e talvez longínqua discussão entre polos de esquerda a direita, Cuba, hoje em dia proporciona gratuitamente a cirurgia de mudança de sexo aos transgêneros, reconhece legalmente as uniões civis entre homossexuais, etc; e os Estados Unidos, Coréia do Norte, Arábia Saudita, China, a nova Rússia ultra-neoliberal e muitos outros países não. Temos também na atualidade países que perseguem LGBTs querendo fazer parte da União Europeia. Vivemos um mundo mega-multi-polar e neste devemos nos situar, todavia sem perder o rastro de pólvora da história. Os direitos dos cidadãos necessitam ultrapassar a discussão das bandeiras ideológicas para avançar, mas nunca podem se excluir das lutas sociais. Um ser humano pode ser ao mesmo tempo de direita ou esquerda, esta é uma questão programática e de envergadura particular, e sem embargo ser ao mesmo um excluído por outras motivações quanto a etnia, credo e orientação sexual.
O outro lado da bandeira colorida
É de conhecimento na atualidade que em muitos países homossexuais e transgêneros reivindicam seu espaço e voz em movimentos de direita. Esta é uma vertente cada vez mais visível.
Em muitas rodas de discussão se esbravejam pontas extremas de um iceberg. Se de um lago LGBTs de direita recriminam as perseguições históricas e atuais de regimes auto-proclamados comunistas, socialistas e similares; em um outro campo ideológico LGBTs parte atuante na atual militância de esquerda vem que a direita atual tem como retórica a exclusão desta comunidade.
O impasse fica ainda maior quando se nota que ambas militâncias por muitas vezes não sabem se para a sua luta como seguimento de classe lhes poderá vir a convir mais um lado que outro.
Dentro das 4 letrinhas da sigla do arco-íris os homossexuais homens, geralmente mais consumistas e individualistas, pendem ao discurso da direita neoliberal que parece englobar o seu grito de liberdade sexual e individual a possibilidade de ascensão social. As homossexuais mulheres surgem como majoritariamente nas fileiras ligadas as esquerdas e de militância social, geralmente com um perfil mais próximo ao discurso feminista. Claro que exceções de ambos lados existem, como Tammy/Tommy Gretchen, que já teve candidaturas pelo PP. Mas dentro do "mundinho" LGBT há também preconceitos com setores da comunidade que poderiam com um pouco de conscientização serem superados. Todavia não esqueçamos que boa parte desta geração foi educada e criada por uma anterior que não viveu em democracia plena.
Por Nando Schweitzer, Jornalista, Diretor Teatral e provocador nas horas vagas
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