Foi o suficiente que um país da União Europeia, um desses periféricos que têm a honra de fazer parte da grande família europeia mas que não devem, jamais, se esquecer de onde vêm, insinuasse que talvez, veja bem, talvez, suas decisões econômicas e políticas devessem levar em conta sua própria realidade antes das diretrizes de Bruxelas, para que se levantasse a fúria dos bem-pensantes, daqueles que sabem o que é melhor para os outros, pois, afinal, não é para isso que existem os especialistas, os economistas, os analistas de risco, os mercados, essa entidade mística que, embora ninguém tenha visto, todos temem?
Compreende-se a preocupação. A União Europeia foi fundada sobre certos princípios inegociáveis, a livre circulação de capitais, a estabilidade monetária, a disciplina fiscal e, acima de tudo, a compreensão tácita de que os países podem, sim, ter eleições, desde que os eleitos saibam se comportar. E não se está aqui a dizer que não possam haver discordâncias, discussões, debates, desde que, ao fim e ao cabo, todos cheguem à conclusão correta, ou seja, a já previamente determinada por aqueles que verdadeiramente compreendem como funciona o mundo.
Mas então vem o dissidente, o insensato, o desorientado, que começa a fazer perguntas inconvenientes: por que não podemos decidir nossa própria política industrial? Por que os investimentos precisam estar atrelados a condições que nem sempre fazem sentido para nós? Por que não podemos, Deus nos livre, negociar acordos comerciais sem pedir permissão? E é então que se inicia o ritual da punição, e não se pense que se faz isso por maldade, nada disso, é por preocupação, por zelo, como se faz com uma criança que quer colocar o dedo na tomada, porque, afinal, um país que decide por si mesmo pode acabar muito mal, vide o exemplo de, bem, não importa, o importante é que não pode.
A imprensa, sempre vigilante, faz sua parte. De repente, descobre-se que os indicadores não são tão bons assim, que há déficits que ninguém notara, que os investidores, esses seres sensíveis, começaram a desconfiar, e veja só que coincidência, o risco país aumentou. Dizem que há tensões no governo, que os ministros discutem, que funcionários estão descontentes, que há rumores de desorganização, de instabilidade, de que talvez, só talvez, tenha sido um erro dar tanto poder a quem não sabe como usá-lo. Claro que tudo isso pode não ser exatamente verdade, mas também não é exatamente mentira, e, no final das contas, a verdade importa menos do que a narrativa bem contada.
E assim, pouco a pouco, o rebelde volta ao eixo, aprende que soberania, na Europa, é um conceito flexível, que há países que a têm e outros que devem contentar-se com a ilusão dela, que há autonomia e há autonomia vigiada, e que qualquer tentativa de mudar isso resultará, inevitavelmente, naquilo que todos já sabem: desconfiança dos mercados, crise de governabilidade, fuga de capitais, instabilidade institucional e, caso ainda assim o recado não seja compreendido, uma intervenção mais direta, sempre em nome da democracia, da estabilidade e do bem comum.
Pois a liberdade de um país é algo muito precioso para ser deixada nas mãos de seus próprios governantes.
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