"Barreiras com o idioma"
Por Fernando Schweitzer em 14/09/2010 na edição 607 - Observatório da Imprensa
O show de Ivete Sangalo no sábado (04/09/2010) no Madison Square Garden, em Nova York, continua rendendo críticas de jornais "internacionais". O veículo americano New York Times deu o seu parecer com a matéria "Idioma e ritmo impedem Ivete de se tornar estrela pop internacional" (em tradução livre).
Depois de afirmar que a cantora brasileira seria a maior estrela de quem ninguém nunca ouviu falar, semanas antes da apresentação que também se tornará um DVD. Tomou-se o rumo de demonstrar o quão xenófobos, mesmo depois da crise e bancarrota em que estão a viver atualmente, nossos ex-compartilhadores de continente. A crise americana e sua quebradeira generalizada não lhes trouxe humildade. A publicação ainda segue dizendo que "não será fácil para a sra. Sangalo expandir seu território e se juntar a cantoras como Beyoncé, Madonna e Shakira como uma estrela pop globalmente reconhecida", diz o NYT. "Há, inevitavelmente, uma barreira de linguagem para músicas em português."
Não que juntar-se a esta lista seja algo positivo. Ivete pode estar caindo no mesmo erro de nossa amiga latina Shakira, hoje internacional, ou seja, americanizada e por isso odiada por grande parte dos colombianos. No show na terra do green card, ela cantou algumas músicas em inglês, como "Human Nature", de Michael Jackson, "Easy", do Commodores, e "Where It Begins", em dueto com a cantora Nelly Furtado.
Um feito inédito
A comparação é inevitável. Pois americanos do norte são realmente completos ignorantes quanto a qualquer coisa fora de seu mundinho de superficialidade e etnocentrismo. Então devemos partir do ponto que décadas atrás eram tão analfabetos em espanhol quanto hoje o são em português. Na verdade, é a mistura do sentimento de baixa auto-estima latina que se auto-sub-julga mesclada ao imperialismo cítrico de década de 90, os construtores do estigma de que qualquer porcaria em inglês é chic (do francês).
Em tempos áureos, Shakira tornou-se febre no mundo inteiro, exceto EUA, com seu terceiro álbum, "Piés Descalsos" (1996). As canções extremamente melódicas, musicalmente surpreendentes e corajosas, com letras intelectuais e uma mistura eletrônico/acústico, quebraram o paradigma da fórmula pop latino e mundial. Com uma sonoridade autêntica, que não tinha sido ouvido antes. Como pode para desconhecedores da cultura afro-brasileira considerada autentica a mistura de rock-balada-axé da artista baiana.
O analfabetismo em espanhol do mundo não hispânico não impediu Shakira de fazer com que canções fossem êxito até mesmo na terra do tio Sam. O álbum que foi lançado internacionalmente em 13 de fevereiro de 1996. Estreou em # 1 em oito países diferentes (dois destes de língua não hispânica), e ranqueando em 5º no Billboard Top Latin Albums. O álbum gerou seis hit-singles "Estoy Aqui" (E.U. Latin # 2), "¿Dónde Estás Corazón?" (E.U.A. Latin # 5), "Pies Descalzos", "Sueños Blancos", "Un Poco De Amor" (Latin # 6), "Antologia" (E.U. América # 15) e "Se Quiere, Se Mata" (Latin # 8).
Até mesmo no Brasil, onde se tem naturalizado o discurso de que o mundo tem apenas dois países – Estados Unidos e o resto –, Shakira virou febre, país este em que menos se acreditava no sucesso de Shakira devido à língua portuguesa, se rendeu às músicas deste disco. "Pies Descalzos" também foi um dos primeiros álbuns latinos a ter um retorno comercial interessante nos Estados Unidos. Devido a "Pies Descalzos", a Sony se viu obrigada a criar o prêmio Prisma de Diamante devido ao 1 milhão de cópias vendidas na Colômbia, um feito inédito até então. Pouco mais de um ano depois, o disco já havia superado a marca dos 3 milhões de exemplares, cerca de 500mil só no Brasil.
Hoje é inglês, ou... inglês!
O jornal continua: "A sra. Sangalo tem outro obstáculo: o ritmo. Muitos hits brasileiros, como `Cadê Dalila´, usam as batidas rápidas do axé, a música do Carnaval na Bahia. Por ser uma batida que poucos fora do Brasil podem acompanhar." Seria falta de coordenação motora? Se até mesmo os Rolling Stones já gravaram uma canção iniciada por atabaques de candomblé, por que uma baiana não pode fazer sucesso cantando axé? No dia 8 de julho, faltando 58 dias para a gravação do DVD, Ivete Sangalo anuncia no Twitter que os ingressos para o show no Madison Square Garden já estavam esgotados, 20 mil estavam à venda.
Afinal, por que raios pessoas semi-analfabetas, ou crianças e adolescentes de baixa renda e rendimento escolar pífio podem consumir lixo americanos como: Madonna, Britney Spears, Beyonce, sem nem citar as tais Boys-Bands de letras de menos de duas estrofes? A considerar que não sabem bem nem português, quem dirá inglês. Por que os analfabetos culturais de lá não poderiam consumir música em português? Se alguém vier com o discurso imperialista de que inglês é um idioma mundial, por obséquio, que vá pra rua falando em inglês. Garanto que não consegue comprar nem uma bala, vai passar fome.
Essa linha de pensamento estandardizado e subserviente me lembra um comentário em aula de um colega de faculdade em Buenos Aires. O rapaz da alta sociedade portenha proferiu: "Estive em Paris e achei um absurdo... Pedi uma informação a um policial e ele não me respondeu e mal me olhou." Detalhe, ele se dirigiu ao policial francês no idioma inglês. Primeiramente, creio que lhe faltou um pouco de cultura geral, pois ignorou o fato de que franceses detestam americanismo. Segundo, creio que ao contrário do que ocorre nos filmes, as pessoas dos 197 restantes países do mundo, excetuando os de língua inglesa, desconhecem ou não possuem fluência em tal idioma. Terceiro, ele desconhece a lei sancionada no tempo do presidente Jacques Chirac, que proíbe o uso do idioma inglês em ambientes públicos governamentais, documentos oficiais e em placas comerciais. Em quarto lugar, o mané estava na França.
Se eu cometesse a gafe corriqueira dos turistas brasileiros em Buenos Aires, de dirigir-me as pessoas de lá em português como se tivesse no Brasil, não seria compreendido. Esse conceito construído pelos filmes hollywoodianos de que cachorros, extra-terrestres, estrangeiros e afins falam inglês fluentemente é recorrente e está no subconsciente das pessoas no mundo. O que é um sintoma de enfermidade sócio-cultural e de perda de identidade crescente. Adquirir cultura, tempos atrás, era natural. Colégios bilingues, trilingues, enfim... Eram uma constante. Hoje o que se têm? Inglês, ou... inglês!
Disseminando o "baianês"
Pobre menina de Juazeiro, que vinda de uma família de músicos, só queria cantar. Virou sucesso e agora segue a política evolutiva da arte pós-moderna. E por mais que tenha já seu artigo na wikipédia em 14 idiomas, terá de aprender inglês para se tornar internacional. Seria como no passado quando um artista necessitava ser aplaudido pela crítica para depois vender para o público em geral, esse incapaz de pensar por si só. Só que hoje o que importa não é qualidade, sim status(do latim). E status hoje é ser americano, ou no mínimo, americanizado.
Ela poderia defender-se dizendo que a muitos anos atrás, Caymmi foi para as bandas de lá a cantar em baianês. Nunca tendo gravado em francês no ano de 1984, no seu septuagésimo aniversário, ele foi condecorado em Paris pelo ministro da cultura francês, Jack Lang, com a Comenda das Artes e Letras da França, atribuída a importantes personalidades culturais. Afinal diziam em tempos remotos que música é uma linguagem universal. Hoje isso só vale para empurrar goela abaixo produtos Yankes pelo mundo, mas na ordem inversa a música e qualquer coisa se torna algo que sofre com as tais "barreiras com o idioma".
Por que Ivete Sangalo não pode com letras de Hebert Vianna, Tim Maia, entre outros, se tornar a primeira cantora em português a cantar para os gringos em um grande prêmio, como foi Shakira a primeira artista a cantar em espanhol num VMA (premiação a MTV americana)?
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